Adorei a capa, oportuna. As cores da bandeira Palestina – preta, branca, verde e vermelha, as cores da de Israel – branca e azul. Fecha, como um curativo, com a cor branca que tem nas duas, a tarja vermelha. As letras e quarta capa em amarelo, cor de ouro, da mente clara. Especialmente, ressalto a opinião de The Guardian: OZ é um raro sopro de sanidade e inteligência. O título, menor do que o nome do autor, sugere ser uma opinião, não uma verdade. O subtítulo: entre o certo e o certo denota compreensão, não o conflito que em geral aponta os “errados”. A lucidez vê os positivos quando não é precedida de ódio. Amós Oz sentiu e sente, (se foi em 2018), a problemática de Israel e Palestina de dentro, assim pode opinar de forma orgânica. Li todo o livro, mas vou me reter na primeira parte – Em Louvor às Penínsulas, material intenso de reflexão, maravilha apresentada em discurso, na Alemanha, diplomaticamente, na manhã seguinte aos ataques em Paris, novembro de 2015. “A única força do mundo capaz de conter e mesmo se sobrepujar aos islamitas fanáticos são os mulçumanos moderados”. O autor fala do hábito de andar antes do amanhecer, que “põe as coisas na proporção correta”: E se eu fosse ele? O que sentiria, desejaria, temeria e esperaria? Do que se envergonha? (lembrei-me aqui de Mandela, que saiu lúcido da prisão de 27 anos, conhecendo muito bem os ingleses). Já tive tal hábito, só que via o sol nascer. Esta postura reflexiva, meditativa, com a mente descansada, clara, limpa, é um verdadeiro ato de lucidez, exercício da compaixão. A Curiosidade (não sei se essa palavra é a melhor tradução) é abordada, pelo autor, como uma forma de ver a frente de, além do além, e deveria ser uma condição do trabalho intelectual e científico. Certa vez quando do livro em análise Inteligência Emocional, num mestrado de relações internacionais, tive de chamar a atenção para o tanto que era lento aquele sistema de organização maravilhoso que é a ciência, contudo, esse processo fora sempre concebido por nós mulheres de forma inata. “Sendo uma pessoa curiosa, assim interessada, seremos melhores pessoas, progenitores, vizinhos, colegas e amantes”. Curiosidade e humor são os antídotos do fanatismo. “Fanáticos não têm senso de humor e raramente são curiosos”. O humor corrói as bases e a curiosidade leva a questionamentos. “A arte, seu mérito principal não é propor uma reforma social ou crítica política”. A boa literatura ou arte é capaz de fazer abrir um terceiro olho em nossa testa! (Essa passou a ser a minha referência, já pensava, mas nunca tinha visto escrito). Pessoalmente, fico muito irritada com a lentidão de frases feitas, ode a mesmice. Se já foi pensado por muitos há algo errado, e se já foi falado é hora de pensar e ultrapassar. Nova luz da consciência no próximo passo. Por isso adoro Mia Couto, lógica que desconhecemos. Creio que em exercício de perpetuidade, o que vemos hoje é reflexo de pelo menos vinte anos atrás, se apoiarmos estaremos atrasados. “Uma visão antiga tem um instante de nascimento – Nathan”. Gosto da abordagem de, em outras palavras: todo bem tem um mal, todo mal tem um bem – Quando o autor fala da fofoca ser prima da literatura de má qualidade, filha da curiosidade e amante de clichês. Amós diz que: escreve não a priori para as nossas emoções ou para o nosso intelecto, mas para a nossa curiosidade. Quanto mais lucidez, a experiência nos mostra, mais imparcialidade. Não é um apoio à visão histórica ou a expertise de um cientista político, mas um lance à curiosidade e a imaginação – como seria viver na pele do outro, sonhar como o outro. Não é apoio a causas, é compaixão pelos aflitos, os que gritam. Um acordo de compromisso baseado em concessões mútuas, não há forma de levar todo o bolo. “Curiosidade -> compromisso-> vida. E vida é para todos!” Na reflexão sobre o mal, os imbuídos de dor tiram a responsabilidade sobre si mesmos, são vítimas da infância, da sociedade, do governo… Quanto a causar dor, o autor afirma “sabemos quando ferimos o outro”. E diz que seu mandamento principal, síntese, seria: Não Ferirás. Pessoalmente, creio que o nosso maior apego é à dor e ao reflexo da dor! O autor dá uma ideia bem trabalhada da gradação do mal, nem bem pelo que é, mas pela extensão e profundidade que atinge. Existe uma tendência à reclamação, onde se coloca todos os inconvenientes no mesmo balaio. Não se julga pela gradação do mal. Oz diz ser um exercício saber distinguir sobre o mal relativo. A exemplo, eu digo: – ser fútil é ruim, roubar para ter futilidades é pior. – ser vaidoso é ruim, humilhar o colega é pior. Há de se cuidar diariamente para não se tornar um servidor do mal. Acho muito difícil se saber pra quem se trabalha. Sempre fiquei impressionada como certas coisas surgiram, tais instrumentos de tortura…. – não ter simpatia e compreensão é ruim, mas degradar alguém é pior. “Ruim, Pior e Pior de tudo”, axioma do autor. Judeus foram rotulados: cosmopolitas, parasitas e intelectuais sem raízes. Tudo por sua nascência em vários lugares, e nós em Brasília, também vindos de todo o país, como seríamos? “Judeus, voltem pra Palestina! Judeus, saiam da Palestina!” Impressiona-me o extremismo, a conduta gregária, a deselegância no trato de terceiros. Quando conheci meu marido, na frente do seu departamento, da UnB, estava escrito: K vai pra p. q. p. (por extenso). Hoje tem uma sala com o nome dele. Quem ocupou cargos importantes sabe como muitas pessoas “mudam a casaca” de forma automática. Nunca compreendi bem, até hoje relaciono isso ao gen da escravidão, ao medo de serem reprimidos. No budismo há muitas citações mostrando o momento fortuito da vida muitas vezes não compreendido. Como exemplo “a família do autor foi expulsa na década de 30, e seria morta na década de 40”. Momentos fortuitos de
O livro de Celeste NG foi traduzido para 30 países e considerado um dos melhores do ano de 1917, pelo New York Times e aborda um tema atualíssimo: as diferenças raciais e culturais em sociedades ainda preconceituosas. O segundo livro da autora aborda o mesmo tema, de uma forma dramática: “Tudo o que nunca contei”. Ela nasceu nos EUA e sua família é asiática. Seu pai, ao chegar do país de origem, trabalhou como físico da NASA e a mãe como professora universitária de Química. Celeste é formada em Harvard com mestrado em Belas Artes pela Universidade de Michigan. Trata-se, portanto, de um tema próximo de sua realidade. Um pressuposto básico em sua narrativa: nunca será fácil o desafio de viver e os conflitos nos acompanharão sempre. E inicia seu livro com a seguinte dedicatória: “Para aqueles que estão por aí, seguindo os próprios caminhos, causando pequenos incêndios”. Pequenos incêndios por toda a parte são, portanto, o tema do livro. Ou seja, metaforicamente, a forma com a qual lidamos com nossos conflitos e decisões, sempre que escolhemos nossos caminhos de vida. E tem como objeto a noção de pertencimento e a luta para ocuparmos um espaço de fala e de poder. Um espaço de busca da completude em um mundo tomado de preconceitos e divisões implícitas de origem, classe, raça e gênero. E a questão: o que devemos fazer? Que caminhos seguir? Nos submetermos às regras, imposições, visões de mundo e valores para termos uma rotina agradável, confortável, segura, adaptável? Ou ousarmos nos desafiar e ao mundo, escolhendo caminhos imprevisíveis, cheios de pequenos e grandes incêndios? Os nossos caminhos? A autora estimula uma escolha corajosa em relação à forma como queremos viver a nossa vida. Assim, Mia refere-se às rupturas que às vezes temos de fazer para vivermos melhor. Algumas vezes, diz ela, é preciso recomeçar do zero. E, com uma bela metáfora, explica para Izzy: “lembre-se, às vezes é preciso queimar tudo e recomeçar. Depois de queimar, o solo fica mais rico e coisas novas podem crescer ali.” (pag. 387/398). Como diria a velha psicologia, no recomeço você leva coisas antigas. Muitas das quais é preciso deixar no caminho, preservando o melhor. Mas carregará a dor e o luto. E o renascimento também. Existem alguns aspectos a considerar na narrativa. O primeiro, é que caminhos diferentes, contraditoriamente, podem nos seduzir. Então, nos estimula a força da organização, do planejamento, da rotina, da estabilidade, do dinheiro. Nos seduz, por outro lado, a liberdade anárquica, a imprevisibilidade, o estranhamento das aventuras. O segundo aspecto, é que somos nós e nossas circunstâncias, como dizia famoso autor. Nosso lugar no mundo, as formas de ocupá-lo e como vivenciamos as relações de poder que nos cercam, se relacionam a lugares estruturalmente colocados à nossa revelia. São a raça, a classe social a que pertencemos e o gênero. Assim como as relações familiares das quais emergimos. A autora se debruça sobre as dificuldades e possibilidades que cercam a vida de seus personagens, a partir dessas condições. Que perpassam, portanto, em última análise a nossa vida e nosso Eu. Nossa humanidade. A história se passa em uma pequena comunidade norte americana de classe média e classe média alta, preponderantemente. Organizada em torno de rígidos valores morais e sociais. “Em Shaker Heights existe um plano para tudo” (pag 21). Os comportamentos são uniformemente esperados e as mulheres estimuladas a serem modelos de donas de casa, mães e esposas. Com regras rígidas ligadas a coisas sem tanta importância, tais como: não deixar a grama do jardim exceder 15 cm de comprimento, pintar as casas de cores determinadas de acordo com o estilo arquitetônico e esconder o lixo até o dia do lixeiro passar. “A filosofia implícita era que tudo podia e devia ser programado, e com isso evitava-se o impróprio, o desagradável e o desastroso.” (pag. 22) É nesse mundo que se dá o encontro de duas famílias profundamente diferentes. A família de Elena Richardson, uma bela mulher branca e loura, que morava em uma mansão com três filhos adolescentes e o esposo, um grande advogado. Eram líderes na comunidade e ela, jornalista, escrevia para o pequeno jornal local. Profundamente organizada, tentando controlar tudo e todos à sua volta, mantendo apagada, contudo, a chama de seus incêndios interiores, passando longe de suas inquietudes, não se permitindo a liberdade de renascer. Ela era a proprietária da casa na qual os aposentos do andar de cima seriam alugados para as estranhas, recentemente chegadas. A família de Mia era formada por ela e sua filha. Em uma vida nômade, constantemente mudando de cidade, pois Mia fugia da ameaça de um segredo. Tudo o que possuíam cabia dentro de um velho e pequeno carro. Negra, sem emprego fixo e artista plástica. Para aumentar seus rendimentos fazia bicos como garçonete. Aceita, posteriormente, a oferta de Elena para trabalhar em sua casa como diarista, alguns dias na semana. Em suas peças de arte Mia mistura fotografia e elementos da natureza e do ambiente de modo geral. Elas são vendidas por uma amiga dona de uma galeria de arte em New York. A filha Pearl é uma adolescente inteligente, bonita e educada. E as duas mantém um relacionamento de intimidade, franqueza, e apoio mútuo. Izzy as considerava as pessoas mais gentis, atenciosas e sinceras que conhecera. O clima da casa era de calma e acolhimento. Mundos profundamente diferentes e cujas casas eram visitadas pelos adolescentes das duas famílias, estudantes da mesma escola da comunidade. O fato de se frequentarem possibilita conhecerem as diferenças entre os dois mundos e as pessoas que os habitam. Izzy, a filha caçula dos Richardson, traduz a patologia familiar. Ela é considerada revoltada e estranha por seus familiares e não vê saídas na vida. Ao conhecer Mia e sua filha se sente fortalecida e mais calma. Ao mesmo tempo, Pearl se sente seduzida pela estabilidade, rotinas e conforto do lar dos Richardson. É, portanto, na dinâmica dessas relações que a autora aborda os problemas relacionados a integração racial, valores sociais
1 – Um pouco sobre o autor: Jean-Marie Gustave Le Clézio nasceu em 13.04.1940. É filho de Raoul Le Clézio, um cirurgião mauriciano, e de sua prima-irmã, Simone Le Clézio, francesa, ambos oriundos de uma família bretã que, no século XVIII, emigrou para as ilhas Maurício e adquiriu a cidadania britânica, após a anexação das ilhas pelo Império. Ali era permitido aos colonos manterem as suas propriedades e o uso da língua francesa. Durante a Segunda Guerra Mundial, a família ficou separada, pois o pai estava impossibilitado de juntar-se à mãe e aos filhos, em Nice. Após a guerra, quando Jean-Marie tinha 8 anos, a família se reuniu novamente, na Nigéria, onde o pai servia como cirurgião do exército britânico. Le Clézio estudou na Universidade de Bristol, concluiu seu curso de graduação em literatura francesa, no Institut d’Études Litteraires de Nice, passou vários anos entre Bristol e Londres, e, afinal, foi para os Estados Unidos onde se tornou professor. Tornou-se famoso aos 23 anos, com seu primeiro romance, Le Procès-verbal (“O interrogatório”), que foi selecionado para o Prêmio Goncourt e obteve o Prêmio Renaudot, em 1963. Desde então, publicou cerca de quarenta livros, incluindo contos, romances, ensaios, duas traduções sobre o tema da mitologia indígena americana, inúmeros comentários e prefácios, assim como algumas participações em obras coletivas. Continua a escrever até hoje. Está com 81 anos. 2 – Sobre o livro: Neste livro, o escritor nos leva para uma longa viagem de retorno à África, onde passou parte de sua vida, voltando ao ano de 1928, até muito além do final da segunda grande guerra. É uma história muito bem contada, mesmo traduzida, revela uma linguagem poética primorosa e emocionante. Seu fio narrativo baseia-se nas lembranças do autor, que refaz o caminho que seu pai percorreu, durante as mais de duas décadas em que trabalhou como médico militar nas colônias inglesas do continente africano. O livro também é uma tentativa do narrador de compreender sua infância dividida entre a Europa e a África e o difícil primeiro encontro com um pai desconhecido, aos oito anos de idade. Como se fosse um resgate do que ele não conseguiu compreender e assimilar quando era criança. A narrativa mescla traços autobiográficos e ficcionais, na tentativa de entender as emoções desse pai e expressar as suas próprias, num curto e profundo relato. Nesse sentido, não só ele mergulha em lembranças, mas também parece reviver todo aquele período, desta vez com outro olhar: o olhar de um homem já amadurecido e capaz de perceber o que lhe escapou na infância. A descrição da paisagem africana é feita com riqueza de detalhes e com muito sentimento, não é uma descrição fria e objetiva. Parece até que a terra se personifica, o rio fala com as margens, as formigas se vestem de soldados para atacar na calada da noite e os cupinzeiros se tornam muralhas e edifícios na concepção iluminada das crianças. O vento e as monções também são mostrados com intensidade. Os lugares e as pessoas são descritos com tanta empatia que, mesmo sem nunca termos ido à África, suscita-nos um sentimento forte, misto de admiração, curiosidade e vontade de proteger aquelas pessoas humildes e exploradas. Ao descrever o pai, que ele conhece aos 8 anos, a difícil convivência inicial, o autor volta no tempo e tenta resgatar os anos que antecederam ao seu nascimento, o amor que aproximou seus pais, os anos em que foram felizes, antes da guerra, a separação, o reencontro. O livro é também uma denúncia dos efeitos da colonização europeia, das injustiças cometidas com aquela gente simples e humilde, mas rica em cultura e tradições. Fala também da matança dos gorilas para vender suas mãos como souvenirs, deixa entrever que ouviu até sobre venda de mãos de crianças. Deixa bem claro que depois da guerra, o encanto deixou de existir. Para o seu pai e para a população. Após intensa exploração, os colonizadores, armaram ditadores locais, que aprenderam rápido a praticar a crueldade e a abandonar a população local a sua própria sorte. Ao escrever o livro, o autor revive todo o seu passado e percebe que, agora, ele entende aquele homem (seu pai) que, tendo vivido e presenciado todo o sofrimento do povo africano não poderia sair ileso dessa experiência. É quando ele se reconcilia com o pai e, realmente, o compreende. Ao final, ele constata que seu pai se tornou um africano. Ao voltar para a França depois da aposentadoria, ele não se encaixa mais naquela sociedade. Não só isso: percebe que sua vida também foi profunda e definitivamente marcada por aquela paisagem, pelas pessoas com as quais conviveu, e sente que ele também foi definitiva e irremediavelmente marcado pela África. Sua conclusão é que sua infância distante está mais próxima do que nunca, está em Ogoja. E os nomes dos lugares ainda ressoam nele como sobrenomes: Bali, Nkom, Bamenda, Banso, Revi, Kwaja, Mbembé, Kaka, Nsungli, Bum, Fungom, Lassim… Afinal, quem é o africano? O pai? O autor? Por Basilina Pereira – cadeira 26 – Letras – Patrono: Olavo Bilac
Conheci a escritora Maria de Lourdes Fonseca numa reunião de escritores e, no primeiro olhar, fiquei encantada, não só pelo seu trabalho, mas, também, com o vigor, o talento e a luta que demonstrava em tudo que fazia. Parecia-me que não cansa nunca, sempre disposta a ajudar o próximo e a empreender objetivos mágicos. Não é apenas uma escritora extremamente talentosa, mas uma profissional habilidosa e dedicada. O livro Casos de casas reporta-nos à própria vida. Descreve a vida de pessoas que, próximas, na Rua 40, transmitem a diversidade, a tristeza e os encantos da vida, bem como a forma de resolver problemas e sobreviver com dignidade, se jamais perder a esperança. Com extrema simplicidade, mostra ao leitor o caminho de pessoas que vivem momentos nebulosos dentro de suas casas e que não conseguem esconder o dia a dia e o sentimento que lhes vai na alma, independentemente do modo de encarar os acontecimentos que lhes desafiam. Todas as casas têm a sua história, e chegamos à conclusão que nenhuma biografia de vida é banal. Muito pelo contrário, cada uma traz em uma profundidade que nos comove. Não tenho certeza, mas acredito que são narrativas presenciadas por sua alma extremamente sensível, cujos personagens chegam ao fundo do poço, sofrem, se desesperam e conseguem sair já mais amadurecidos pelo próprio sofrimento, mesmo porque em certas situações, não dá mais para descer, resta voltar. Outras são singelas e se reportam a mas felicidade verdadeira, porém, nem sempre perene. As que mais me impressionaram foram as narrativas da vida de Sônia com uma desilusão quase intrínseca e, no entanto, revela a grandiosidade de um coração tão generoso que ela mesma não conhecia. Não acredito que uma vida seja mais vívida que a outra, mas ao leitor compete discernir o sentimento e o momento de cada um. Também me impressionou o rapaz que escrevia, de modo sui generis, pela sua personalidade introvertida, o que acontece muitas vezes com pessoas próximas a nós. Os sonhos de dois jovens chamaram-me a atenção, principalmente pelo fato de terem encontrado um anjo, que os conduziu por um caminho de raciocínio e compreensão honesta da vida. Posso assegurar-lhes que os casos d essas casas singulares emocionaram-me profundamente. Li este livro com avidez porque, além de tudo, ensinou-me a refletir de uma maneira peculiar para compreender a humanidade e a mim mesma. Tenho certeza que assim acontecerá com os seus leitores. Creio que não devo especificar mais as histórias desse livro maravilhoso, para que possam saborear com mais expectativa e sentindo o afã de ir até o fim, sentindo, como eu senti, vontade que esse trabalho não acabasse nunca e pudéssemos mergulhar em suas páginas com a ansiedade de poder usufruir cada palavra. Por Vânia Moreira Diniz, Cadeira 76 – Patrono Austregésilo de Athayde
Nos últimos anos chegaram às minhas mãos trechos de “O Arco e a Lira”. Neles se afirmava, acerca das palavras: “Nós somos o seu mundo e elas são o nosso (…) As redes de pescar palavras são feitas de palavras.” (p.37). E se esclarecia: “Coisas e palavras sangram pela mesma ferida” (p.35). Seu autor declarava que “A categoria do poético (…) não é nada mais que um dos nomes do sagrado” (p.203). Indaguei-me: será por esse motivo que sentimos emoções devastadoras ao ler um poema? “O Arco e a Lira” é um tratado literário pleno de alusões filosóficas, históricas e poéticas. Seu autor, poeta e ensaísta mexicano, embaixador, prêmio Nobel da Literatura em 1990. A obra busca responder a três questões: “há um dizer poético – o poema – irredutível a qualquer outro dizer? o que dizem os poemas? como se comunica o dizer poético?” (p.30). A obra está organizada em três partes: O Poema; A Revelação Poética; Poesia e História. Octavio Paz afirma que “A poesia vive nas camadas mais profundas do ser (…)” (p.49) e se nutre de um complexo jogo de influências, tendo simultaneamente um valor plástico e sonoro, afetivo e significativo. Segundo ele, é possível haver poemas que não contêm poesia, assim como “paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas” (p.16). E esclarece: “O poema é um organismo verbal que contém, suscita e emite poesia” (p.17). O autor indaga acerca do misterioso jogo entre criador e criatura, em que “a voz do poeta é e não é sua.” (p.191)? De quem é essa voz? Da musa, do espírito, do consciente, do gênio, da razão, da sociedade? Que abismo é esse do qual brota a inspiração? “O poeta é ao mesmo tempo objeto e sujeito da criação poética” (p.202). “Antes da criação, o poeta como tal não existe. Nem depois. É poeta graças ao poema. O poeta é criação do poema tanto quanto este daquele” (p.205). “O Arco e a Lira” nos convoca a adentrar os mistérios da Poesia, sua voz, tessitura e sacralidade. E, quiçá, decifrar a indagação inicial da obra: “não seria melhor transformar a vida em poesia do que fazer poesia com a vida?” Por Maria Alexandra Militão Rodrigues (cadeira 82) – Letras – Patrono: Manoel de Barros
Escritor colombiano, mestre do realismo fantástico, Gabriel Garcia Márquez é detentor de vários prêmios, incluindo-se o Nobel de literatura em 1982. Em doze contos peregrinos, gabo, como era conhecido, constrói seus enredos baseados em tragédias da vida cotidiana, e mistura o destino com acontecimentos sobrenaturais, tão presentes em sua obra. Os contos são, portanto, uma mistura do real e do fantástico. No prefácio, o autor nos informa que durante anos, tomou notas de temas diversos sem ter noção de qual rumo daria a eles. De 64 temas, ficaram 18 e, posteriormente, 6 foram jogados no cesto do lixo, ficando apenas doze. Os contos têm um traço comum: são histórias de peregrinos latino-americanos na Europa que trazem consigo o colorido da terra natal em seus anseios e sonhos. As situações beiram ao extraordinário ao retratarem amores e desejos, fazendo seus personagens viverem a monotonia da vida de forma altiva permeando os acontecimentos com a fantasia, igualmente honrosa. Com grande habilidade, o autor constrói personagens complexos e empáticos. Garcia Márquez procurou a unidade de tom, de ritmo e de estilo como uma recorrência de imagens, tornando os contos lineares numa visão panorâmica na memória do leitor. Alguns deles foram transformados em roteiros de cinema e em seriado para TV. Ressalto os contos que mais me agradaram: 1- Só Vim Telefonar, a história de Maria de La Luz, uma mexicana bonita, que por conta de uma pane em seu carro, no meio de uma estrada deserta, pega carona num ônibus que levava mulheres de volta para um manicômio. Ao chegar, inutilmente, ela tentou identificar-se, dizer que ela só queria telefonar ao marido, mas, desacreditada, teve um trágico destino: permaneceu como uma das pacientes do local. A maior decepção da mulher, quebrando suas expectativas de ser libertada, é que o marido, ao visitá-la foi convencido de que ela precisava do tratamento. Impossível não se compadecer da personagem. 2- Maria dos Prazeres é um conto que beira à realidade. A história que se inicia no Brasil, onde ela, aos 14 anos, foi vendida por sua mãe no porto de Manaus, para um oficial da marinha. Ela foi abandonada na zona de prostituição em Barcelona, sem amigos e sem dinheiro. Aposentada, com mais de 70 anos, tinha obsessão pela morte, por conta de alguém que leu o seu destino. Daí, ensinou seu cachorrinho a chorar por ela e a visitá-la no cemitério. Vários acontecimentos se mesclam e ela termina nos braços de um jovem homem que havia lhe dado carona na volta de uma visita ao cemitério. Foi então que ela percebeu que havia se enganado quanto à premonição: que seu destino não era ainda a morte. 3- Outro conto que me impactou foi O Rastro de seu Sangue na Neve. Trata-se de um casal que sai em viagem de lua de mel. Eles viajam para a França no luxuoso carro que Billy Sanchez, seu marido, ganhou de presente do sogro. Ao receber um bouquê de flores, Nena Daconte, a jovem noiva de 18 anos, furou um dedo com um espinho. Viajaram por mais de dez dias e Billy encantado com o carro de luxo, não percebeu que o dedo da esposa não parava de sangrar, desde que saíram de Madri. Estava nevando. O dedo sangrava tanto que ao colocá-lo para fora da janela do carro, Nena percebeu que deixava um rastro de sangue. Ela falou: se alguém quiser nos encontrar só vai ter que seguir o rastro do meu sangue na neve. Quando chegam a Paris, a jovem é internada e não pode receber visitas por uma semana. Quando seu marido consegue, por fim, visitá-la constata que ela havia morrido. Uma história cheia de ternura e tristeza. 4- A Santa é uma história fantástica. Margarito Duarte, ao tentar transferir o corpo da filha, de sete anos, do cemitério, por conta de uma represa que ia ser construída no local, descobriu que o corpo, levíssimo, estava intacto no caixão. Até as flores estavam frescas e perfumadas. Ela havia morrido de uma febre desconhecida. Logo a notícia se espalhou no vilarejo e o bispo se interessou porque seria muito importante ter uma santa colombiana. Todos se reúniram para enviar Margarito com o corpo da filha para Roma a fim de ela ser canonizada. Assim, ele partiu com a filha dentro de uma caixa que parecia um estojo de um saxofone. A sua luta é inglória e repleta de empecilhos, como a morte de cinco papas que impediram acesso ao pedido de santificação. Por sua persistência, 22 anos esperando, Margarito é descrito como “o personagem em busca do autor”. Sabemos que os livros de Gabriel Garcia Márquez são reconhecidamente marcantes, como Cem Anos de Solidão, o Amor nos Tempos do Cólera, (um belíssimo romance de uma história de amor), O Outono do Patriarca, Crônica de uma Morte Anunciada, dentre outros. Doze Contos Peregrinos é um livro de contos narrados com a maestria que lhe é peculiar, e do qual eu recomendo a leitura. Por Norma Bezerra – Cadeira 20 – Patrono: Ariano Suassuna.
É um livro de fácil leitura! Aliás, o primeiro, durante a existência do nosso Grupo, que eu li em um dia! Gostei muito da formatação, das ricas ilustrações, do tipo de texto e da escrita do autor (como um bom contador de histórias). Estes insights facilitaram em muito a compreensão. Sem sombra de dúvidas, é um livro diferente e interpretativo, como perceberam. Nos deparamos com uma Protagonista sem nome, e em uma jornada de autoconhecimento. Era uma mulher com vida, marido e filho, aparentemente, normais. Quando ainda muito jovem, teve um período em sua vida, que não conseguia dormir. Parecia que havia perdido a sua energia e funcionava no “piloto automático”. Esse período passou, e a Protagonista prosseguiu sua caminhada. A forma como ela descreve a sua rotina é fria e dura! A impressão que nos passa é de que “as coisas” no seu casamento, não ocorreram da maneira que ela esperava, embora amasse seu marido e o seu filho. A sua “estranha insônia” retornou e logo a sua percepção sobre o mundo dá uma reviravolta e ela passa a repensar suas escolhas! Começa a achar que não fez nada de relevante em sua vida, e passa a observá-la por um novo enfoque. A narrativa se inicia com alguém conformada com o seu dia a dia, mas no desenrolar da história, muitos fatos acontecem. O Prognóstico que o autor faz tentando desviar o “ foco”, para a Leitura do Romance Anna Karenina, pela Protagonista – Achei fantástico! Pois, sabemos que algumas pessoas, que têm insônia costumam ler, durante a noite. E eu me pergunto – Será que a Protagonista, se identificava com a história de Anna Karenina?… Creio que deve haver algum link! Não?… A identificação dela, com este tipo de Romance de Tolstói, não deve ser à toa. Quem sabe, a Anna Karenina era uma mulher forte, comunicativa, feliz, corajosa e resiliente, e a Protagonista não se via assim?… Dá-nos a entender que ela tinha problemas psicológicos., etc… pois, não conseguia dormir, e assim, não podia se renovar ou mesmo, descansar, como a maioria das pessoas normais. A história termina com a Protagonista saindo de casa, com o carro de seu marido, deixando para o leitor muitas margens de interpretação. É impossível interpretar a escrita de “SONO” ao pé da letra. Tudo é muito simbólico! Todo o Livro é aberto a interpretações, quer literais ou metafóricas. Às vezes, chegamos a pensar que a Protagonista parece “delirar” misturando a realidade ao seu problema de não conseguir dormir (a falta de sono). Já no final da história, quando estava no Parque, parece “entrar em parafuso”. Não se sabe, ao certo, se ela estava delirando, ou até “pirando,” de vez! O livro mexe muito com as emoções, o lado psicológico, e creio até que alguns leitores ficaram muito ansiosos. E sobre o excesso de consciência, por parte da Protagonista, isto é benéfico?… – A Protagonista não dormia, não compartilhava nada com o seu marido, ficava lendo a noite inteira e passou a viver o mundo dela. Será que o excesso de consciência fez com que ela confundisse o sono (ou seja, a realidade), com as alucinações?… Podemos chegar à conclusão de que o Livro não se encerra numa única situação. Ele deixa vários questionamentos, inclusive, sobre a morte (um eterno estado de consciência). – E nós… temos consciência dos momentos que estamos vivendo?… Ou fazemos tudo no automático?… Será que estamos acordados para as nossas vidas?… – Cada pessoa percebe, de maneira diferente, as questões da lucidez, ou mesmo da consciência. Por fim, é um livro para se pensar/refletir muito… Como dito, anteriormente, não dá para se interpretar a escrita dele “ao pé da letra”. É uma história, no mínimo, instigante e que nos deixa mais voltados para perguntas do que para respostas. Talvez, até carecesse de algumas páginas a mais. Como por exemplo, a narrativa da relação da Protagonista com o seu filho. Para mim, uma das frases marcantes do Livro: — “Viver e não conseguir se concentrar é o mesmo que estar de olhos abertos, sem poder enxergar”. Meireluce Fernandes – Presidente da Academia de Letras e Música do Brasil – Cadeira 13 – Letras – Patrona: Cecília Meireles
O livro concentra intervenções e artigo proferidas em conferências internacionais, congressos, encontros, inauguração, fóruns em Moçambique, Angola, Portugal e Brasil. Um manancial de inter-relações e inferências que envolvem sua formação, biologia, a experiência em continente Africano, a capacidade de percepção dos entraves no caminho da liberdade pessoal e cidadã, e o olhar poético que a tudo envolve tratando de humanizar, trazer a baila e elevar temas de alta complexidade do caminhar humano. Recomendo especialmente para os inquietos (as) dispostos a uma visão conscientiva mais apurada, não desvencilhada dos sonhos. Por Nádima Nascimento, Patrona Neuza França, cadeira 47.
O livro de Daniel Keyes, Flores para Algernon vendeu mais de 5 milhões de cópias. Um livro instigante e muito reflexivo, cheio de questionamentos que leva o leitor a pensar sobre si próprio, sobre suas relações interpessoais, e principalmente, sobre experimentos em nome da ciência que sobrepõem a ética e respeito pelo ser humano. Um livro fascinante que prendeu minha atenção do começo ao fim. O livro tem como personagem principal Charlie Gordon, de 32 anos, que possui um Q.I. muito baixo do normal e sonha em se tornar mais inteligente. O personagem tem uma grande dificuldade de aprendizado, e, por outro lado, uma grande facilidade em esquecer qualquer tipo de ensinamento. Seu desejo em ser mais inteligente está ligado à sua vontade de se comunicar com a mesma desenvoltura das pessoas que o rodeiam e poder fazer amigos que gostem dele. Charlie é um personagem cheio de bondade e pureza de sentimentos e o tempo todo busca se relacionar com um mundo tão adverso ao seu entendimento. É constantemente motivo de chacota e preconceito entre os amigos da padaria onde trabalha como ajudante de serviços gerais. A forma como o livro aborda este contexto fica muito claro a maneira como as pessoas tidas como mentalmente deficientes sofrem discriminação. É triste constatar isto por meio do olhar de uma pessoa com deficiência de Q.I, como Charlie, mesmo sendo um personagem fictício. Ao despertar da própria inteligência, constata o quanto em sido motivo de riso perverso e maldoso por aqueles tidos como seus amigos. Em sua narrativa, Charlie relata situações de bullying por não se enquadrar no padrão esperado pela sociedade. Esta situação começa desde cedo, em suas relações familiares, onde sua mãe e irmã o rejeitam ostensivamente, como sendo motivo de vergonha, por ele não corresponder às expectativas de uma criança normal. Devido sua deficiência intelectual, Charlie foi convidado para ser cobaia em uma cirurgia totalmente inovadora, nunca tentada anteriormente, e que prometia aumentar seu nível de inteligência. O sucesso da cirurgia era uma incógnita, pois os testes só haviam sido feitos em um rato, cujo o nome era Algernon. Influenciados pelos bons resultados no rato, os cientistas resolveram fazer a experiência em humanos, escolhendo Charlie para o grande experimento. O livro é como um diário, onde Charlie registra seu desenvolvimento intelectual a partir da cirurgia ao qual foi submetido. A narração de Charlie por meio da escrita, começa cheia de erros de ortografia e coesão de pensamentos e vai mudando à medida que o tempo passa, onde Charlie é constantemente submetido a testes e leituras para desenvolvimento de seu novo potencial de inteligência. O personagem começa a ver o mundo que o rodeia com outros olhos, e aos poucos vai demonstrando uma grande e significativa melhora em seus registros, seja por meio da escrita como também na forma cognitiva de expressar sua nova vivão de mundo, deparando-se com novas realidades que até então haviam passado desapercebido ao seu entendimento. Estas novas realidades o fazem questionar sobre sua vida, gerando decepções e frustrações. Aos poucos Charlie vai perdendo sua pureza e inocência, desenvolvendo novas formas de se relacionar com as pessoas e com tudo que o cerca. Seu QI muito elevado, após a cirurgia, dificultou ainda mais suas interações sociais – Charlie não sabia discernir sentimentos como raiva e tristeza e isto gerou uma explosão de emoções contraditórias, fazendo com que ele se sentisse muito solitário, não se reconhecendo mais como pessoa que era, nem a qual se transformara. O livro suscita muitas indagações: Como fica questões como moral e ética ao usar um ser humano em experimentos inconclusivos que podem causar danos irreparáveis? O conhecimento pleno gera felicidade? A inteligência emocional caminha lado a lado do conhecimento acadêmico? O que é mais importante para a sociedade? A inteligência ou as emoções? É possível ser feliz desvinculando estes dois aspectos? Nós estamos preparados para conviver com nossas próprias transformações intelectuais sem mudar nossa essência? Estamos preparados para aceitar o outro diferente daquilo que idealizamos? O final é surpreendente, deixando evidente que ninguém consegue fugir da essência do que realmente é. A sociedade precisa despir-se urgentemente de seus estereótipos, aceitando as diferencias, para que cada ser humano viva dentro de sua própria plenitude com amor e dignidade. Por Custódia Wolney – Patrona Rachel de Queiroz – Cadeira 19
A obra “Senhor das Moscas”, de William Golding, é considerada um clássico da Literatura Universal. Foi a primeira obra publicada pelo autor, em 1954. Golding foi laureado com o Nobel de Literatura de 1983. Penso que, para entender um pouco o livro, é preciso saber um pouco sobre o autor. William Golding foi um professor de Inglês e Literatura da Inglaterra. Amava ser professor e só não o fez quando precisou se juntar à Marinha Britânica para lutar na Segunda Guerra Mundial. Dessa experiência é que vieram vários temas abordados em seus livros, notadamente em “Senhor das Moscas”, admirado com a “vocação” humana para a crueldade com motivos e finalidades banais e, por vezes, desconhecidos. Em seguida, é preciso nos conscientizarmos de quanto simbolismo há nessa obra, a começar pelo próprio título: “senhor das moscas”, em hebraico, é o vocábulo que dá origem à palavra Belzebu. Outro símbolo fundamental é a concha, um símbolo dúbio: ao tempo em que simboliza a prosperidade, também simboliza a morte, mas no sentido de renovação das gerações. A ilha é outro símbolo marcante: significa um conhecimento limitado representado por uma área insular da psique. A fogueira tem diferentes simbologias. Uma delas é a purificação, como é o fogo do espírito santo, e outra é o efeito destruidor, negativo e diabólico, representada pelo fogo do inferno. O livro conta a história de um grupo de meninos de uma escola que é deixado numa ilha do Pacífico durante a Segunda Guerra, sem a supervisão. Inicialmente, o grupo tenta se organizar por meio da eleição de um chefe, que deve mantê-los vivos até o resgate. Ralph, o chefe, está preocupado com o resgate e, para tanto, determina que uma fogueira deveria permanecer acesa por 24 horas no ponto mais alto da ilha, de modo a ser vista por um navio que os resgate. Também se preocupa com abrigo para todos e higiene, naquilo que for possível. Porquinho, seu principal conselheiro, é a inteligência do grupo, que o despreza, por ser gordinho, usar óculos, ter asma, e estar preocupado com as mesmas questões de Ralph. O antagonista, Jack, queria ser o chefe, mas não tem o mesmo apelo da Ralph, que detinha a concha, cujo som reunia todos os meninos. Era, no entanto, o chefe do coral da escola, tinha poder sobre esse subgrupo. Decide que eles seriam os caçadores. Há ainda os meninos pequenos que não conseguem ajudar muito, mas precisam ser protegidos, e os outros maiores, que se dividem entre os grupos de Ralph e Jack. No grupo de Ralph, além de Porquinho, estão Simon, o sensível; e Sam e Eric, os gêmeos que acabam sendo uma pessoa só. No grupo de Jack, destacam-se Roger, que mais tarde se torna o carrasco, e Maurice, o cérebro de Jack. O livro trata, a meu ver, de três temas principais, todos interligados: (i) o poder; (ii) a inclinação humana para a selvageria e violência; e (iii) a crença no sobrenatural. Só por esses três temas podemos ver o quanto essa obra é profunda e capaz de nos provocar importantes reflexões. O poder sobre os demais é disputado entre Jack e Ralph, que possuem visões opostas sobre o que significava ser o chefe naquela condição em que se encontravam. Ralph representa aquele poder democrático, que chama todos para a conversa e a tomada de decisão, como se fosse um conselho ou mesmo um parlamento naquela pequena sociedade. Jack, por sua vez, exerce um poder despótico, baseado na violência. Mesmo antes de conseguir sua primeira presa, já que se autodeterminou o caçador, Jack admite sua “necessidade” de matar. Ele mantém um grupo fiel, que não se atreve a desobedecê-lo, e tem como armas a violência e a habilidade da caça e, portanto, de fornecer carne, comida, que era escassa. Jack é capaz de criar todo um clima por meio de dança e de um mantra, que coloca todos numa espécie de transe coletivo. A pintura no rosto, principalmente, funciona como uma máscara libertadora, que deixa Jack e quem mais estiver pintado livres para fazer o que quiserem, sem nenhum moral, ética, compaixão ou qualquer outro valor humano. Esse transe gerava selvageria, demonstrada por meio das caçadas cruéis e alcança seu ápice com o brutal assassinato de Simon. Simon encontrou o grupo num momento de transe. Chegou a desmascarar o “sobrenatural” que afligia a todos: um tal monstro, criado na imaginação dos meninos, a partir do corpo sem vida de um soldado preso a um paraquedas. Ainda que alguns meninos tenham captado essa mensagem de Simon, Jack manteve a “memória” do monstro viva. Afinal, para um tirano, conservar um objeto de medo de que somente ele seja capaz de proteger os demais é um dos sustentáculos de seu poder. Porquinho é aquele que pensa, que raciocina, mas na visão dos outros, não servia para liderar. Essa ideia e esse tipo de comportamento estão bem presentes na nossa sociedade atual. Hoje em dia, parece cada vez mais difícil ter independência de pensamento, como Porquinho em relação aos demais – estamos chegando ao ápice do pensamento único, em que até mesmo as palavras são uniformizadas. Porquinho era, para usar um termo atual, constantemente cancelado pelos outros meninos, especialmente por Jack. No fundo, Jack sabia que Porquinho era perigoso aos seus propósitos e logo o fez objeto de seu ódio. Além disso, Porquinho detinha a fonte do fogo, os óculos, necessários para fazer a fogueira e para cozinhar a carne das caçadas. Ralph foi o único que chegou a reconhecer o valor de Porquinho. No capítulo 5, Porquinho filosofa: “não existe monstro nenhum — nem monstro nem fera, com garras e dentes enormes e essas coisas — mas também sei que não existe medo. Só o medo das outras pessoas.” Assim, ao longo da obra, Golding mostra que nós, seres humanos, somos os verdadeiros monstros e causadores de medo. No final, aquelas crianças constatam a perda de sua inocência, de forma brutal e abrupta, numa aventura em que conheceram os mais obscuros meandros
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