PEQUENOS INCÊNDIOS POR TODA A PARTE, DE CELESTE NG
O livro de Celeste NG foi traduzido para 30 países e considerado um dos melhores do ano de 1917, pelo New York Times e aborda um tema atualíssimo: as diferenças raciais e culturais em sociedades ainda preconceituosas. O segundo livro da autora aborda o mesmo tema, de uma forma dramática: “Tudo o que nunca contei”. Ela nasceu nos EUA e sua família é asiática. Seu pai, ao chegar do país de origem, trabalhou como físico da NASA e a mãe como professora universitária de Química. Celeste é formada em Harvard com mestrado em Belas Artes pela Universidade de Michigan. Trata-se, portanto, de um tema próximo de sua realidade. Um pressuposto básico em sua narrativa: nunca será fácil o desafio de viver e os conflitos nos acompanharão sempre. E inicia seu livro com a seguinte dedicatória: “Para aqueles que estão por aí, seguindo os próprios caminhos, causando pequenos incêndios”.
Pequenos incêndios por toda a parte são, portanto, o tema do livro. Ou seja, metaforicamente, a forma com a qual lidamos com nossos conflitos e decisões, sempre que escolhemos nossos caminhos de vida. E tem como objeto a noção de pertencimento e a luta para ocuparmos um espaço de fala e de poder. Um espaço de busca da completude em um mundo tomado de preconceitos e divisões implícitas de origem, classe, raça e gênero. E a questão: o que devemos fazer? Que caminhos seguir? Nos submetermos às regras, imposições, visões de mundo e valores para termos uma rotina agradável, confortável, segura, adaptável? Ou ousarmos nos desafiar e ao mundo, escolhendo caminhos imprevisíveis, cheios de pequenos e grandes incêndios? Os nossos caminhos?
A autora estimula uma escolha corajosa em relação à forma como queremos viver a nossa vida. Assim, Mia refere-se às rupturas que às vezes temos de fazer para vivermos melhor. Algumas vezes, diz ela, é preciso recomeçar do zero. E, com uma bela metáfora, explica para Izzy: “lembre-se, às vezes é preciso queimar tudo e recomeçar. Depois de queimar, o solo fica mais rico e coisas novas podem crescer ali.” (pag. 387/398). Como diria a velha psicologia, no recomeço você leva coisas antigas. Muitas das quais é preciso deixar no caminho, preservando o melhor. Mas carregará a dor e o luto. E o renascimento também.
Existem alguns aspectos a considerar na narrativa. O primeiro, é que caminhos diferentes, contraditoriamente, podem nos seduzir. Então, nos estimula a força da organização, do planejamento, da rotina, da estabilidade, do dinheiro. Nos seduz, por outro lado, a liberdade anárquica, a imprevisibilidade, o estranhamento das aventuras.
O segundo aspecto, é que somos nós e nossas circunstâncias, como dizia famoso autor. Nosso lugar no mundo, as formas de ocupá-lo e como vivenciamos as relações de poder que nos cercam, se relacionam a lugares estruturalmente colocados à nossa revelia. São a raça, a classe social a que pertencemos e o gênero. Assim como as relações familiares das quais emergimos. A autora se debruça sobre as dificuldades e possibilidades que cercam a vida de seus personagens, a partir dessas condições. Que perpassam, portanto, em última análise a nossa vida e nosso Eu. Nossa humanidade.
A história se passa em uma pequena comunidade norte americana de classe média e classe média alta, preponderantemente. Organizada em torno de rígidos valores morais e sociais. “Em Shaker Heights existe um plano para tudo” (pag 21). Os comportamentos são uniformemente esperados e as mulheres estimuladas a serem modelos de donas de casa, mães e esposas. Com regras rígidas ligadas a coisas sem tanta importância, tais como: não deixar a grama do jardim exceder 15 cm de comprimento, pintar as casas de cores determinadas de acordo com o estilo arquitetônico e esconder o lixo até o dia do lixeiro passar. “A filosofia implícita era que tudo podia e devia ser programado, e com isso evitava-se o impróprio, o desagradável e o desastroso.” (pag. 22)
É nesse mundo que se dá o encontro de duas famílias profundamente diferentes. A família de Elena Richardson, uma bela mulher branca e loura, que morava em uma mansão com três filhos adolescentes e o esposo, um grande advogado. Eram líderes na comunidade e ela, jornalista, escrevia para o pequeno jornal local. Profundamente organizada, tentando controlar tudo e todos à sua volta, mantendo apagada, contudo, a chama de seus incêndios interiores, passando longe de suas inquietudes, não se permitindo a liberdade de renascer. Ela era a proprietária da casa na qual os aposentos do andar de cima seriam alugados para as estranhas, recentemente chegadas.
A família de Mia era formada por ela e sua filha. Em uma vida nômade, constantemente mudando de cidade, pois Mia fugia da ameaça de um segredo. Tudo o que possuíam cabia dentro de um velho e pequeno carro. Negra, sem emprego fixo e artista plástica. Para aumentar seus rendimentos fazia bicos como garçonete. Aceita, posteriormente, a oferta de Elena para trabalhar em sua casa como diarista, alguns dias na semana. Em suas peças de arte Mia mistura fotografia e elementos da natureza e do ambiente de modo geral. Elas são vendidas por uma amiga dona de uma galeria de arte em New York. A filha Pearl é uma adolescente inteligente, bonita e educada. E as duas mantém um relacionamento de intimidade, franqueza, e apoio mútuo. Izzy as considerava as pessoas mais gentis, atenciosas e sinceras que conhecera. O clima da casa era de calma e acolhimento.
Mundos profundamente diferentes e cujas casas eram visitadas pelos adolescentes das duas famílias, estudantes da mesma escola da comunidade. O fato de se frequentarem possibilita conhecerem as diferenças entre os dois mundos e as pessoas que os habitam. Izzy, a filha caçula dos Richardson, traduz a patologia familiar. Ela é considerada revoltada e estranha por seus familiares e não vê saídas na vida. Ao conhecer Mia e sua filha se sente fortalecida e mais calma. Ao mesmo tempo, Pearl se sente seduzida pela estabilidade, rotinas e conforto do lar dos Richardson. É, portanto, na dinâmica dessas relações que a autora aborda os problemas relacionados a integração racial, valores sociais e a pobreza.
Dois acontecimentos trazem sérias consequências para as duas famílias. O primeiro, a descoberta do segredo de Mia por Elena. O segundo, envolve um processo de adoção de uma criança asiática de poucos meses de idade. A ser adotada por um casal rico, amigos de Elena e do esposo. Criança que a mãe biológica quer reaver, encontrando em Mia uma aliada. Os problemas decorrentes dos dois fatos obrigam mãe e filha a irem embora, apesar da revolta de Pearl. Izzy, a caçula dos Richardson, resolve deixar sua família também. O objetivo é encontrar suas duas amigas. Ao ir embora, acende pequenos incêndios em todos os quartos da casa. O que queria dizer? Mostrava à sua família seus conflitos e dores de crescimento? Naquele ambiente onde se sentia confrontada com a “carapaça rígida de sua vida fortificada”? (pag. 396) Ou lembrava que precisamos acender nossos incêndios, para recomeçarmos mais felizes? A casa é totalmente destruída e a família se muda temporariamente para onde vivia Mia e Pearl.
Ao partir, no entanto, Mia deixa um envelope na mesa para a família Richardson, com fotografias para cada um, “metade retratos, metade desejos, capturados no papel”. (pa.401). Quando Elena distribuiu as fotos, cada um reconheceu a sua. A de Elena “era uma gaiola de passarinho recortada em papel, quebrada como se algo muito poderoso tivesse se libertado de lá de dentro.” (pag.403) A gaiola era feita de jornal recortado dos artigos escritos por Elena. No meio da gaiola repousava uma pequena pena dourada. “Algo havia descoberto suas asas”. Talvez somente uma foto para outras pessoas. “…mas para eles era insuportavelmente íntimo, como ver o próprio corpo nu no espelho”. (pag.401)
Durante a viagem Mia resolve passar na casa de seus pais. Uma oportunidade para Pearl conhecer seus avós e ser conhecida. Seria uma tentativa de reconciliação com o passado e de começar a criar raízes?
A narrativa de Celeste é limpa, clara, límpida. Seus personagens bem delineados, fortes, consistentes. Mas houve críticas: o livro era bom, mas não emocionava, não surpreendia. É possível que nele não encontremos a dramaticidade e a beleza das imagens de Hannah Cristin, por exemplo. Mas Celeste é como um bisturi afiado. Cirúrgica e metodicamente, mas com uma enorme delicadeza, ela nos incita a acender nossos pequenos ou grandes incêndios. Desde que nos levem aos nossos melhores caminhos.
Por Luiza Cardoso – Cadeira 2 – Patrono Rui Barbosa.